Clarice Lispector
Clarice Lispector (ucraniano: Кларісе Ліспектор) (Tchetchelnik,
10 de
dezembro de 1920
— Rio de Janeiro, 9 de dezembro
de 1977)
foi uma escritora
brasileira
nascida na Ucrânia.
De família
judaica, emigrou com a família para o Brasil quando
tinha um pouco mais de um ano de idade. Começou a escrever logo que aprendeu a
ler, na cidade do Recife.
Clarice falava vários idiomas, entre eles o francês
e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o
idioma materno familiar, o iídiche.
Obra literária
Em 1944 publicou seu primeiro
romance, Perto do coração selvagem.
A
literatura brasileira era nesta altura dominada por uma tendência
essencialmente regionalista, com personagens contando a
difícil realidade social do país na época. Clarice Lispector surpreendeu a
crítica com seu romance, quer pela problemática de caráter existencial,
completamente inovadora, quer pelo estilo solto elíptico, e fragmentário, que
críticos reputaram reminiscente de James Joyce
e Virginia
Woolf, se bem que ainda mais revolucionário.
Em
verdade, a obra de Clarice ultrapassou qualquer tentativa de classificação. A
escritora e filósofa francesa Hélène Cixous vai ao ponto de dizer que há uma
literatura brasileira A.C. (Antes da Clarice) e D.C. (Depois da Clarice).
Seu
romance mais famoso talvez seja A hora da estrela, o último publicado
antes de sua morte. Este livro narra a vida de Macabéa, uma nordestina criada
no estado de Alagoas que migra para o Rio de Janeiro, e vai morar em uma pensão,
tendo sua vida descrita por um escritor fictício chamado Rodrigo S.M.
Faleceu de
câncer
(cancro) em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu
57º aniversário. Foi inumada no Cemitério Israelita do Cajú, no Rio de
Janeiro.
Livros de sua autoria
- Perto do coração selvagem (1944)
- O lustre (1946)
- A cidade sitiada (1949)
- Alguns contos (1952)
- Laços de família (1960)
- A maçã no escuro (1961)
- A legião estrangeira (1964)
- A paixão segundo G.H. (1964)
- O mistério do coelho pensante (1967)
- A mulher que matou os peixes (1968)
- Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969)
- Felicidade clandestina (1971)
- A imitação da rosa (1973)
- Água viva (1973)
- A vida íntima de Laura (1974)
- A via crucis do corpo (1974)
- Onde estivestes de noite (1974)
- Visão do esplendor (1975)
- A hora da estrela (1977)
- Póstumos
- Para não esquecer (1978)
- Quase de verdade (1978)
- Um sopro de vida (pulsações) (1978)
- A bela e a fera (1979)
- A descoberta do mundo (1984)
- Como nasceram as estrelas (1987)
- Cartas perto do coração (2001) (cartas trocadas com Fernando Sabino)
- Correspondências (2002)
- Correio Feminino (2006)
- Entrevistas (2007)
Curiosidades
Clarice
traduziu para o português, em 1976, o livro Entrevista com o Vampiro, da autora
estadounidense Anne Rice[1].
A primeira
edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado,
erroneamente, um ponto de interrogação no título.
Em artigo
publicado no jornal The New York Times, no dia 11/03/2005, a
escritora foi descrita como o equivalente de Kafka na literatura latino-americana. A afirmação
foi feita por Gregory Rabassa, tradutor para o inglês de Jorge Amado,
Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e de Clarice[2].
Referências
- ↑ Editora Rocco - Catálogo - Entrevista com o Vampiro
- ↑ Julie Salamon (11 de março de 2005). An Enigmatic Author Who Can Be Addictive. The New York Times. Página visitada em 12 de setembro de 2007.
A Hora da Estrela
Clarice Lispector
A CULPA E MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE
ARRANJE
OU
O DIREITO AO
GRITO
ou
.QUANTO AO
FUTURO.
OU
LAMENTO DE UM
BLUE
OU
ELA NAO SABE
GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE
PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO
ESCURO
OU
EU NÃO POSSO
FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS
FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA
LACRIMOGENICA DE CORDEL
OU
SAIDA DISCRETA
PELA PORTA DOS FUNDOS
Tudo no mundo começou com um sim.
Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da
pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o
sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane, só consigo a
simplicidade através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não
houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas
acontecem antes de acontecer? Se antes da pré pré-história já havia os monstros
apocalípticos?
Se esta história não existe, passará
a existir. Pensar é um ato. Sentir ó um fato. Os dois juntos - sou eu que
escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato
interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível,
extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se
esvaziou de todo desejo e reduz-sé ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor
de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa.
Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente - é a minha
própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade.
Felicidade? Nunca vi palavra mais
doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. Como eu irei
dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual - há dois anos
e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De
quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma
em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a
morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos
antecedentes. Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar
invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até
sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular
em cubos de geléia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei
eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora
inventada - que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e
quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe
faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte. o delicado
essencial.
Como é que sei tudo o que vai se
seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do
Rio de Janeiro, peguei no ar de
relaxe o sentimento de perdição no rosto de urna moça nordestina. Sem falar que
eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo.
Quem vive sabe, mesmo sem saber que
sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de
sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo
o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A
história - determino com falso livre arbítrio = vai ter uns sete personagens e
eu sou um dos mais importantes deles, é claro. .Eu, Rodrigo S. M. Relato
antigo, este, pois não quero ser, modernoso e inventar modismos à guisa de
originalidade.
Assim é que experimentarei contra os
meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale" seguido de
silêncio e de chuva caindo.
História exterior e explícita, sim,
mas que contém segredos - a começar por um dos títulos, "Quanto ao
futuro", que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto
final. Não se trata de capricho meu - no fim talvez se entenda a necessidade do
delimitado. (Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza permitir, quero
que seja grandioso.) Se em vez de ponto fosse. seguido por reticências o título
ficaria aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até malsãs e sem
piedade. Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal,
a nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser
dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isto é que não vos dou a vez.
Não se trata apenas de narrativa, é
antes de tudo vida primária que respira, respira; respira. Material poroso, um
dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O
que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça
entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe
a vida.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmola. Sei
que há moças que vendem o corpo, única posse real, em, troca de um bom jantar
em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo
-- Página 28 para vender, ninguém a
quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora
- também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um
outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode
lacrimejar piegas.
Como a nordestina, há milhares de
moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões
trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e
que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba
nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?
Estou esquentando o corpo para
iniciar, esfregando as mãos uma na outra para ter coragem. Agora me lembrei de
que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava: o movimento é
espírito. A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingirme a mim
mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma - e esse oco é o tudo que posso
eu jamais ter. Mais do que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança
do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e
somente acreditar que a silêncio que eu creio em mim é resposta a meu - a meu
mistério. Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples.
Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre
os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que
penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para
escrever não-importa o quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta
história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evoca um
sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo
escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos
o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a
palavra, pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro - e á jovem
(ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho
então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me
a humildemente - mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria
humildade - limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda
feita contra ela. Ela, que deveria ter ficado nó sertão de Alagoas com vestido
de chita e sem nenhuma: datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar
lentamente letra por letra - a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à
máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que
parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra
linda e redonda do amado chefe a palavra "designar" de modo como em
língua falada diria: "designar".
Desculpai-me, mas vou continuar a
falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco
pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou
isto é ser uma pessoa?
Quero antes afiançar que essa moça
não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se
perguntar "quem sou eu?'' cairia estatelada e em cheio no chão. É que
"quem sou eu? " provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade?
Quem se indaga é incompleto.
A pessoa de quem vou falar é tão
tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso
porque nem ao menos a olham.
Voltando a mim: o que escreverei não
pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o
que estarei dizendo será apenas nu.
Embora tenha como pano de fundo - e
agora mesmo - a, penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos quando de noite
atormentado durmo. Que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada
cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por
todos. É que a esta história falta melodia cantabile. O seu ritmo é às vezes
descompassado. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura -
fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos
não há como fugir.
Pergunto-me se eu deveria caminhar à
frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece, porém que eu mesmo ainda não
sei bem como esse isto terminará. E também porque entendo que devo caminhar
passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida
com o tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar paulatinamente
apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça.
Com esta história eu vou me
sensibilizar, e bem sei que cada dia é um. dia roubado da morte. Eu não, sou um
intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As
palavras são sons
-- Página 31 transfundidos de
sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada
de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e
obscura tendo como contrato, baixo grosso da dor Alegro com brio. Tentareí
tirar duro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco de bola sem
a bola. O fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma
fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.
Mas desconfio que toda essa conversa
é feita apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo.
Antes de ter surgido na.minha vida
essa datilógrafa, eu era um homem até mesmo um pouco contente, apesar do mau
êxito na minha literatura. As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam
se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode ,apodrecer.
Transgredir, porém, os meus próprios
limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a
realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer
"realidade". O que narrarei será meloso? Tem tendência mas então
agora mesmo seco e endureço tudo. E pelo menos o que escrevo não pede favor a
ninguém e não implora socorro: agüenta-se na sua chamada dor com uma dignidade
de barão.
É. Parece que estou mudando de modo
de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional -
e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me
defender é escrever sobre ela. Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura.
Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que falei.
Embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade. E
que anjos esvoacem em vespas transparentes em torno de minha cabeça quente
porque esta quer enfim se transformar em objeto-coisa, é mais fácil.
Será mesmo que a ação ultrapassa a
palavra?
Mas que ao escrever - que o nome
real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem,
inventar-se-á. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. Por que escrevo? Antes
de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz
conteúdo. Escrevo, portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de
"força maior", como se diz nos requerimentos oficiais, por
"força de lei". Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem
de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou ó
escuro da noite. Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro, e passos.
Escuridão? Lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de
seu corpo. Nunca a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. O
acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que
percebem o estigma fogem com horror.
Quero neste instante falar da
nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada
exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si.
Também eu, de fracasso em fracasso,
me reduzi a mim, mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus.
Quero acrescentar, à guisa de informações
sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no
--Página 33 presente, pois sempre e
eternamente é o dia de hoje - e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o
estado das coisas neste momento.
E eis que fiquei agora receoso
quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo?
Verifico que escrevo de ouvido assim
como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? sou um
homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de
algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando
escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que
sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança
de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Não, não é
fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços
espelhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem
falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho
contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil.
Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos
de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama. De uma coisa tenho
certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa
inteira que na certa está tão viva quanto eu.
Cuidai dela porque meu poder é só
mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da
esvoaçada magreza: E se for triste a minha narrativa?
Depois na certa escreverei algo
alegre, embora alegre por quê? Porque também sou um homem de hosanas e um dia,
quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina.
Por enquanto quero andar nu ou em
farrapos, quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter
a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não.
Isso será coragem minha a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis.
Agora não é confortável: para falar
da moça tenho que não fazer a barba, durante dias e adquirir olheiras escuras
por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além
de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da
nordestina. Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me apresentar de modo
mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante
mesmo batendo à máquina.
Tudo isso, sim, a história é
história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra.
A palavra tem que se parecer com a palavra.
Atingi-la é o meu primeiro dever
para comigo.
E a palavra não pode ser enfeitada e
artisticamente vã, tem que ser apenas ela. Bem, é verdade que também queria
alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha
perpétua. Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e
baixo, grave e terra, tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu
tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito. E quero aceitar minha
liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de
loucura. Porque parece. Existir não é lógico.
A ação desta história terá como
resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez
alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó. Mas voltemos a
hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me entendendo e eu ouço
escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos. E ouço
passos cadenciados na rua: Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou
escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me
copiar com uma delicadeza de borboleta branca. Essa idéia de borboleta branca
vem de que, se a moça vier a se casar, casar-se-á magra e leve, e, como virgem,
de branco. Ou não se casará? O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no
entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha
fatal.
Sou obrigado a procurar uma verdade
que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada
tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de
corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além.
Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.
Escrevo por não ter nada a fazer no
mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou
um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não
fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os
dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos
fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o
que eu tivesse sido e não fui.
Pareço conhecer nos menores detalhes
essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito,
ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era
menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio. E
foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra
margem. O velho aproveitou e disse:
- Me leva também? Eu bem montado nos
teus ombros? O moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe:
- Já chegamos, agora pode descer.
Mas aí o velho respondeu muito sonso
e sabido:
- Ah, essa não! É tão bom estar aqui
montado como estou que nunca mais vou sair de você! Pois a datilógrafa não quer
sair dos meus ombros. Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua.
Por isso não sei se minha história vai ser - ser o quê? Não sei de nada, ainda
não me animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não
sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz: é que
realmente não sei o que me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que
me escapa a cada instante querendo que eu o recupere. Esqueci de dizer que tudo
o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo ruflar enfático de um tambor
batido por um soldado. No instante mesmo em que eu começar a história - de
súbito cessará o tambor.
Vejo a nordestina se olhando ao
espelho e - um ruflar de tambor - no espelho aparece o meu rosto cansado e
barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Não há dúvida que ela é uma pessoa
física. E adianto um fato: trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha.
Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também como é que eu vou cair
de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a
ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como um pintor que só
pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não
saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua
alma tenha que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado,
pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a velocidade de
querer ver o mundo.
Também tive que me abster de sexo e
de futebol. Sem falar que não entro em contacto com ninguém. Voltarei algum dia
à minha vida anterior?
Duvido muito. Vejo agora que esqueci
de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a
simplicidade de minha linguagem. Pois como eu disse a palavra tem que se
parecer com a palavra, instrumento meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou
mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de
entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.
Também esqueci de dizer que o
registro que em breve vai ter que começar - pois já não agüento a pressão dos
fatos - o registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio
do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada,
refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás, foi ele quem patrocinou
o último terremoto em
Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas,
de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem
com servilidade e subserviência. Também porque - e vou dizer agora uma coisa
difícil que só eu entendo - porque essa bebida que tem coca é hoje. Ela é um
meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente. Quanto à moça, ela vive
num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive,
inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade - para que mais que
isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E
procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da
moça. Moça essa - e vejo que já estou quase na história - moça essa que dormia
de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido. Para
adormecer nas frígidas noites de inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se
e dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz
entupido, dormia exausta, dormia até o nunca. Devo acrescentar um algo que
importa muito para a apreensão da narrativa: é que esta é acompanhada do
princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina
exposta. Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino
plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e
amarela como se ele já tivesse morrido: E talvez tenha. Tudo isso eu disse tão
longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco.
Pois esta história é quase nada. O jeito é começar de repente assim como eu me lanço
de repente na água gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem suicida o
intenso frio. Vou agora começar pelo meio dizendo que - - que ela era
incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só
vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si
mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou
fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada
a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos
meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o
que me impressiona). Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão)
nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante
de roldanas avisou lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia
provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia
manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na
datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à
moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou
.cerimoniosa a seu escondidamente amado chefe: - Me desculpe o aborrecimento.
O Senhor Raimundo Silveira - que a
essa altura já lhe havia virado as costas - voltou-se um pouco surpreendido com
a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa
o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto: - Bem, a
despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco. Depois de
receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda
atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e
rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que
o espelho; baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua
existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada
pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de
papelão. ï Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (Há os que
têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É
apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem. Se não,
também está bem. Mas por que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo
puramente maduro e ouro no estio?) Quando era pequena sua tia para castigá-la
com á o medo dissera-lhe que homem-vampiro - aquele que chupa sangue da pessoa
mordendo-lhe o tenro da garganta - não tinha reflexo no espelho. Até que não
seria de todo ruim ser vampiro pois bem que lhe iria algum rosado de sangue no
amarelado do rosto, ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a
derramá-lo. A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira. Aprendera em pequena
á cerzir. Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de
restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo: cetim bem brilhoso, um beijo
de almas. Cerzideirinha mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de
açúcar. Ela era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era
infeliz. É porque ela acreditava. Em quê? Em vós, mas (não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa - basta -
acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça.
Nunca perdera a fé. (Ela me incomoda
tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto
menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar
vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão
que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de
fibra? Não, ela é doce e obediente.) Viu ainda dois olhos enormes, redondos,
saltados e interrogativos - tinha olhar de quem tem uma asa ferida - distúrbio
talvez da tiróide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? a Deus? Ela
não pensava em Deus, Deus náo pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo.
Na distração aparece - Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há
respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um "não" na cara?
Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer
que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela
mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra
resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há
anos esperando.
Enquanto isso as nuvens são brancas
e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens:
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê
com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou de
perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se "panos", diziam que
vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se
ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco encardida
pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de
combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era
murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de
ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas
tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na
rua, ela era café frio.
E assim se passava o tempo para a
moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa
delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a
amo. Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: "que é que você me
pede chorando que eu não lhe dê cantando"? Essa moça não sabia que ela era
o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir
infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para que, não se
indagava.
Quem sabe, achava que havia uma
gloriazinha em viver. Ela
pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz
Então era. Antes de nascer ela era
uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? Mas
que fina talhada de melancia. Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda
o que estou denunciando. Agora (explosão) em rapidíssimos traços desenharei a
vida pregressa da moça até o momento do espelho do banheiro.
Nascera inteiramente raquítica,
herança do sertão - os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade
Ihe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o
diabo perdera as botas. Muito 'depois fora para Maceió com a tia beata, única
parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por
exemplo, a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de uma
cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós
dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batia mas não era
somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual - a tia que não se
casara por nojo - é que também considerava de dever seu evitar que a menina
viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro
aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro
vir a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não
parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até
no capim vagabundo há desejo de sol. As pancadas ela esquecia pois esperando-se
um pouco a dor termina por passar; Mas o que doía mais era ser privada da
sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida.
Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? A menina
não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não
saber fazia parte importante de sua vida. Esse não-saber pode parecer ruim, mas
não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a
abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo.
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como
se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na
hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de
glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.
Quando era pequena tivera vontade
intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca
para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não
merecia o amor de um cão. Do contacto com à tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas
a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja
porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas. Pois que vida é
assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão
de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era
um parafuso dispensável. Mas uma coisa descobriu inquieta: já não sabia mais
ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor. E, se pensava melhor, dir-se-ia
que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. Ela falava; sim,
mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às vezes consigo mas ela me foge
por entre os dedos. Apesar da morte da tia, tinha certeza de que com ela ia ser
diferente, pois nunca ia morrer. (É paixão minha ser o outro. No caso a outra.
Estremeço esquálido igual a ela.) O definível está me cansando um pouco.
Prefiro a verdade que há no prenúncio. Quando eu me livrar dessa história,
voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios. Eu não
inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência. Ela não era nem
de longe débil mental, era à mercê e crente como uma idiota. A moça que pelo
menos comida não mendigava, havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com
fome. Só eu a amo. Depois - ignora-se por quê - tinham vindo para o Rio, o
inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e
ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro
moças balconistas das Lojas Americanas. O quarto ficava num velho sobrado
colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros,
depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais
imundo dava-lhe saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como que ouvindo
acordes de piano alegre - será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um
futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para
que esta se torne real.)
Rua do Acre. Mas que lugar. Os
gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso pois tenho terror sem nenhuma
vergonha do pardo pedaço de vida imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de
ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do
sertão. Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de
artigos por atacado de exportação e importação? (Se o leitor possui alguma
riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se
é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve
fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida
massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas
tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga
que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim.)
Dos verões sufocantes da abafada rua
do Acre ela só sentia o suor, um suor que cheirava mal. Esse suor me parece de
má origem. Não sei se estava tuberculosa, acho que não. No escuro da noite um
homem assobiando e passos pesados, o uivo do vira-latas abandonado. Enquanto
isso - as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que nada tem a ver
com ela e conosco. Pois assim se passavam os dias. O cantar de galo na aurora sanguinolenta
dava um sentido fresco à sua vida murcha. Havia de madrugada uma passarinhada
buliçosa na rua do Acre: é que a vida brotava no chão, alegre por entre pedras.
Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para ir
espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se
sabe por que dava aperto no coração, um ou outro ,delicioso embora um pouco
doloroso cantar de galo. Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a
sua cama, dando-lhe gratidão. Sono superficial porque estava há quase um ano
resfriada. Tinha acesso de tosse seca de madrugada: abafava-a com o travesseiro
ralo. Mas as companheiras de quarto - Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria
José e Maria apenas - não se incomodavam. Estavam cansadas demais pelo trabalho
que nem por ser anônimo era menos árduo. Uma vendia pó-de-arroz Coty, mas que
idéia. Elas viravam para o outro lado e readormeciam. A tosse da outra até que
as embalava em sono mais profundo. O céu é para baixo ou para cima? Pensava a
nordestina. Deitada, não sabia. Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava
meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem
mastigadinho e engolir. É. Eu me acostumo mas não amanso. Por Deus! eu me dou
melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto
no prado - tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado
pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão - sei
que ele não exige que eu faça sentido ou me explique. Talvez a nordestina já
tivesse chegado à conclusão de que vida incomoda bastante, alma que não cabe
bem no corpo, mesmo alma rala como a sua. Imaginavazinha, toda supersticiosa,
que se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver – se
desencantaria de súbito de princesa que era e se transformaria em bicho
rasteiro. Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de
si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em grave castigo e até risco de
morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte por intermédio de um viver
de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar. Essa economia lhe
dava alguma segurança, pois, quem cai, do chão não passa. Teria ela a sensação
de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez
uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de
pensar. Mas eu; que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito
e pago as contas de luz, gás e telefone. Quanto a ela, até mesmo de vez em
quando ao receber o salário comprava uma rosa. Tudo isso acontece no ano este
que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta,
não sou um desertor. Às vezes lembrava-se de uma assustadora canção desafinada
de meninas brincando de roda de mãos dadas - ela só ouvia sem participar porque
a tia a queria para varrer o chão. As meninas de cabelos ondulados com laço de
fita cor-de-rosa. "Quero uma de vossas filhas de marré-marré-deci."
"Escolhei a qual quiser de marré." A música era um fantasma pálido
como uma rosa que é louca de beleza mas mortal: pálida e mortal a moça era hoje
o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então
costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola
e rindo muito. A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só
a imaginação maléfica a trazia para o presente; saudade do que poderia ter sido
e não foi. (Eu bem avisei que era literatura de cordel embora eu me recuse a ter
qualquer piedade.) Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se
tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena
consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. A vida
que tanto amo. Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole frio de café
antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar.
Ela era calada (por não ter o que
dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite
assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal. Durante a
noite na rua do Acre era raro passar um carro, quanto mais buzinassem; melhor
para ela. Além desses medos, como se não bastassem, tinha medo grande de pegar
doença ruim lá embaixo dela - isso, a tia lhe ensinara. Embora os seus pequenos
óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se
lembrava do que acontecera de manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem
palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. Os galos de que falei avisavam
mais um repetido dia de cansaço. Cantavam o cansaço. E as galinhas, que faziam
elas? Indagava-se a moça. Os galos pelo menos cantavam. Por falar em galinha, a
moça às vezes comia num botequim um ovo duro. Mas a tia lhe ensinara que comer
ovo fazia mal para o fígado. Sendo
assim, obedientemente adoecia, sentindo dores do lado esquerdo oposto ao
fígado. Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no
que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a
realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra "realidade"
não via nada. Nem a mim, por Deus. Quando dormia quase que sonhava que a tia
lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era
assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por que, talvez porque o
que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia
de propósito culpada e rezava
mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém.
Rezava mas sem Deus, ela não sabia
quem era Ele e, portanto ele não existia. Acabo de descobrir que para ela, fora
Deus, também a realidade era muito pouco. Dava se melhor com um irreal
cotidiano, vivia em câmara leeeenta, lebre puuuuulando no aaaar sobre os
ooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, o vago era o de dentro da natureza.
E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era
tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica.
Claro que era neurótica, não há
sequer necessidade de dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo
menos isso: muletas. Vez por outra ia para a Zona
Sul e ficava olhando as vitrines
faiscantes de jóias e roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco. É que
ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro.
Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. O pior
momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta,
o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era pequena -
farofa seca - e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é sempre
encantada, que susto. Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim
mesmo e - quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria· um dia o céu
dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás, não é entrar no céu, é oblíquo
na terra mesmo. Juro que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu
pudesse melhoraria as coisas. Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o
corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão. (Quanto a
escrever, mais vale um cachorro vivo.)
Devo registrar aqui uma alegria. É
que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que
era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve
êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem
mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando
se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de
tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia meio - pelo menos eu
não posso – de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de
artifício. Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era.
Quando via um, pensava com
estremecimento de prazer: será que ele vai me matar?
Se a moça soubesse que minha alegria
também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria
falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra.
E tinha um luxo, além de uma vez por
mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das
mãos. Mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo
desgastado e via-se o sujo preto por baixo. E quando acordava? Quando acordava
não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou
datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma,
passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.
Será que eu enriqueceria este relato
se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não
tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não
mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca
como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos
por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não
tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado
nimbo, entre céu ë inferno. Nunca pensara em "eu sou eu". Acho que
julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo
embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso.
Pensando bem: quem não é um acaso na
vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é
um ato que é um fato. É quando entro em contato com forças interiores minhas,
encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim,
é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma
galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu?
Espanto-me com o meu encontro. A
nordestina não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não - pois
não é que estava viva? Esquecera os nomes da mãe e do pai, nunca mencionados
pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso
estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo
povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei).
Continuando: Todas as madrugadas
ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem
baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio
Relógio, que dava "hora certa e cultura", e nenhuma música; só
pingava em som de gotas que caem - cada gota de minuto que passava. E,
sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de
minuto para dar anúncios comerciais - ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois
também entre os pingos do tempo dava certos ensinamentos dos quais talvez algum
dia viesse precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos
Magno era na terra dele chamado
Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca se
sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a informação de que o único
animal que não cruza com filho era o cavalo. - Isso, moço, é indecência, disse
ela ara o rádio. Outra vez ouvira: "Arrepende-te em Cristo e Ele te dará
felicidade." Então ela se arrependera. Como não sabia bem de que,
arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que a vingança é coisa infernal.
Então ela não se vingava. Sim, quem
espera sempre alcança. É?
Tinha o que se chama de vida
interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as próprias
entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do
ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de tanta
interioridade, eram vazios porque lhes faltava o núcleo essencial de uma prévia
experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem o saber o
vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece. Não sabia que
meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua
vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para
crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia
nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais. Mas tinha
prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estremecente sob o lençol de brim,
costumava ler à luz de vela os anúncios que recortava dos jornais velhos do
escritório. É que fazia coleção de anúncios. Colava-os no álbum. Havia um
anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto de um creme para
pele de mulheres que simplesmente não eram ela. Executando o fatal cacoete que
pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era tâo
apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que
nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo. É que lhe faltava
gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada
esfarelada. Tornara-se como o tempo apenas matéria vivente em sua forma
primária. Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser infeliz
de uma vez e ter pena de si. (Quando penso que eu podia ter nascido ela - e por
que não? - estremeço. E parece-me covarde fuga o fato de eu não a ser, sinto
culpa como disse num dos títulos.) Em todo caso o futuro parecia vir a ser
muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente,
sempre há um melhor para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha
em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela
acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só
se sabe que respiro.
Embora só tivesse nela a pequena
flama indispensável: um sopro de vida. (Estou passando por um pequeno inferno
com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque
senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer
o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa
alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que
ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma
verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um
réu.) Será que entrando na semente de sua vida estarei como que violando o
segredo dos faraós? Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém
como todas as nossas vidas um segredo inviolável? Estou procurando danadamente
achar nessa existência pelo menos um topázio de esplendor. Até o fim talvez o
deslumbre, ainda não sei, mas tenho esperança. Esqueci de dizer que às vezes a
datilógrafa tinha enjôo para comer. lsso vinha desde pequena quando soubera que
havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a
grande fome.
Parecia-lhe que havia cometido um
crime e que comera um anjo frito, as asas estalando entre os dentes. Ela
acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam. Nunca havia jantado ou
almoçado num restaurante. Era de pé mesmo no botequim da esquina. Tinha uma
vaga idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável.
Havia coisas que não sabia o que
significavam. Uma era "efeméride". E não é que Seu Raimundo só
mandava copiar com sua letra linda a palavra efemérides ou efeméricas? Achava o
termo efemírides absolutamente misterioso. Quando o copiava prestava atenção a
cada letra. Glória era estenógrafa e não só ganhava mais como não parecia se
atrapalhar com as palavras difíceis das quais o chefe tanto gostava. Enquanto
isso a mocinha se apaixonara pela palavra efemérides. Outro retrato: nunca
recebera presentes. Aliás não precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que
por um leve instarite cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura,
deixara sobre a mesa. O título era "Humilhados e Ofendidos". Ficou
pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social.
Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a
ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia
luta possível, para que lutar? Pergunto eu: conheceria ela algum dia do amor o
seu adeus? Conheceria algum dia do amor os seus desmaios? Teria a seu modo o
doce vôo? De nada sei. Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um
pouco triste e um pouco só. A nordestina se perdia na multidão. Na praça Mauá
onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento. Ah, mas
existiam os navios cargueiros que lhe davam saudades quem sabe de quê. Isso só
às vezes. Na verdade saía do escritório sombrio, defrontava o ar lá de fora,
crepuscular, e constatava então que todos os dias à mesma hora fazia exatamente
a mesma hora. Irremediável era o grande relógio que funcionava no tempo. Sim,
desesperadamente para mim, as mesmas horas. Bem, e daí? Daí, nada. Quanto a
mim, autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a rotina me afasta de
minhas possíveis novidades. Por falar em novidades, a moça um dia viu num
botequim um homem tão, tão, tão bonito que - que queria tê-lo em casa. Deveria ser
como - como ter uma grande esmeralda-esmeralda-esmeralda num estojo aberto.
Intocável. Pela aliança viu que ele era casado. Como casar com-com-com um ser
que era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de
vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito além do possível
equilíbrio de uma pessoa. Pois não é que quis descansar as costas, por um dia?
Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas.
Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe
que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito
perigoso. E a mentira pegou. As vezes só a mentira salva. Então, no dia
seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela
primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só
para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida.
Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia.
Dançava e rodopiava porque ao estar
sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida
solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto
sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a
dona dos quartos, e; ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se
lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo
própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão
contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada.
Até deu-se ao luxo de ter tédio - um tédio até muito distinto. Desconfio um
pouco de sua facilidade inesperada de pedir favor. Então precisava ela de
condições especiais para ter encanto? Por que não agia sempre assim na' vida? E
até ver-se. no espelho não foi tão assustador: estava contente. mas como doía.
- Ah mês de maio, não me largues nunca mais! (Explosão) foi a sua íntima
exclamação no dia seguinte, 7 de maio, ela que nunca exclamava. Provavelmente
porque alguma coisa finalmente lhe era dada. Dada por si mesma, mas dada. Nesta
manhã de dia 7, o êxtase inesperado para o seu tamanho pequeno corpo. A luz
aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua opacidade. Maio, mês dos véus
de noiva flutuando em
branco. O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir
três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no
lixo para o meu desespero - que os mortos me ajudem a suportar o quase
insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de longe consegui "
igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi
sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildemente que contarei
agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não
sei, perdi o encontro. Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos
véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no
final da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou (explosão)
a primeira espécie de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela
tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam
por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma
espécie que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E a
moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiaba-com-queijo.
Ele... Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou,
perguntou-lhe:
-- E se me desculpe, senhorita, posso
convidar a passear?
-- Sim, respondeu atabalhoadamente
com a pressa antes que ele mudasse de idéia.
-- E, se me permite, qual é mesmo a
sua graça?
-- Macabéa.
-- Maca -- o quê?
-- Bea, foi ela obrigada a
completar.
-- Me desculpe mas até parece doença
de pele.
-- Eu também acho esquisito mas
minha mãe ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse, até um ano
de idade eu não era chamada não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser
chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo - parou
um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor -
pois como o senhor vê eu vinguei ... pois é ...
- Também no sertão da Paraíba
promessa é questão de grande dívida de honra.
Eles não sabiam como se passeia.
Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem
onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos.
E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao
recém-namorado:
- Eu gosto tanto de parafuso e
prego, e o senhor?
Da segunda vez em que se
encontraram' caía uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se
darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas
escorrendo.
Da terceira vez em que se
encontraram - pois não é que estava chovendo? - o rapaz, irritado e perdendo o
leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:
- Você também só sabe é mesmo
chover!
- Desculpe.
Mas ela já o amava tanto que não
sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor. Numa das vezes em
que se encontraram ela afinal perguntou-lhe o nome.
- Olímpico de Jesus Moreira Chaves -
mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos, que
têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar
pessoas para se aproveitar delas e lhe: ensinara como pegar mulher:
- Eu não entendo o seu nome - disse
ela. - Olímpico? Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela
nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo. Mas ele, galinho de
briga que era, arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não sabia
responder. Disse aborrecido:
- Eu sei mas não quero dizer!
- Não faz mal, não faz mal, não faz
mal... a gente não precisa entender o nome.
Ela sabia o que era o desejo -
embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era
um gosto meio doloroso que subia do baixo ventre e arrepiava o bico dos seios e
os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. Ficava
então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar.
Olímpico de Jesus trabalhava de
operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de
"operário" e sim de "metalúrgico". Macabéa ficava contente
com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa,
embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no
mundo. "Metalúrgico e datilógrafa" formavam um casal de classe. A
tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro
acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça. O trabalho consistia em pegar
barras de metal que vinham desligando de cima da máquina para colocá-las
embaixo, sobre uma placa deslizante. Nunca se perguntara por que colocava a
barra embaixo. A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de
dinheiro: dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do
vigia.
Macabéa disse:
- As boas maneiras são a melhor
herança.
- Pois: para mim a melhor herança é
mesmo muito dinheiro: Mas um dia vou ser muito rico disse ele que tinha uma
grandeza demoníaca: a sua força, sangrava. Uma coisa que tinha vontade de ser
era toureiro. Uma vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés quando
vira a capa vermelha. Não tinha pena do touro. Gostava era de ver sangue.
No Nordeste tinha juntado salários e
salários para arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro
faiscante. Este dente lhe dava posição na vida. Aliás, matar tinha feito dele
homem com letra maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no
Nordeste de "cabra safado". Mas não sabia que era um artista: nas
horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as
vendia. Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao respeito, esculpia tudo do
Menino Jesus. Ele achava que o que é, é mesmo, e Cristo tinha sido além de
santo um homem como ele, embora sem dente de ouro. Os negócios públicos
interessavam Olímpico. Ele adorava ouvir discursos. Que tinha seus pensamentos,
isso lá tinha. Acocorava-se com o cigarro barato nas mãos e pensava. Como na
Paraíba ele se acocorava no chão, o traseiro sentado no zero, a meditar. Ele
dizia alto e sozinho: - Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado. E não é
que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso,
próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem.
No futuro eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado? E
obrigando do os outros a chamarem-no de doutor. Macabéa era na verdade - uma figura
medieval enquanto Olímpico de Jesus se julgava peça-chave, dessas que abrem
qualquer porta. Macabéa simplesmente não era técnica, ela era só ela. Não, não
quero ter sentimentalismo e, portanto vou cortar o coitado implícito dessa
moça. Mas tenho que anotar que Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida e o
telefone do escritório só chamava o chefe e Glória. Ela uma vez pediu a
Olímpico que lhe telefonasse. Ele disse: - Telefonar para ouvir as tuas
bobagens? Quando Olímpico lhe -.dissera que terminaria deputado pelo Estado da
Paraíba,. ela ficou boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei uma
deputada? Não queria, pois deputada parecia nome feio. (Como eu disse, essa não
é uma história de pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as inominadas
sensações, até sensações de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão
eu estouro.) As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha,
carne-de-sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e
eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que passou, é sempre
acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam por demais irmãos, coisa que - só agora
estou percebendo - não dá para casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso.
Casariam ou não? Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca
sombra faziam no chão. Não menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa
alguma uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si a dura
semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe
dava força de vida. Mais do que ela que não tinha anjo da guarda. Enfim o que
fosse acontecer, aconteceria. E por enquanto nada acontecia, os dois não sabiam
inventar acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública.
E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de
Deus.
Ele: - Pois é.
Ela: - Pois é o quê?
Ele: - Eu só disse pois é!
Ela: - Mas "pois é" o quê?
Ele: - Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: - Entender o quê?
Ele: - Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: - Falar então de quê?
Ele: - Por exemplo, de você.
Ela: - Eu?!
Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de
gente.
Ela: - Desculpe, mas não acho que sou muito gente.
Ele: - Mas todo mundo é gente, meu Deus!
Ela: - É que não me habituei.
Ele: - Não se habituou com quê?
Ela: - Ah, não sei explicar.
Ele: - E então?
Ela: - Então o quê?
Ele: - Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: - É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é
que eu faço para conseguir ser possível?
Ele: - Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que
é do teu agrado.
Ela: - Acho que não sei dizer.
Ele: - Não sabe o quê?
Ela: - Hein?
Ele: - Olhe, até estou suspirando de
agonia. Vamos não falar em nada, está bem?
Ela: - Sim, está bem, como você
quiser.
Ele: - É, você não tem solução.
Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu. No sertão da Paraíba não há
quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai saber de mim.
- É?
- Pois se eu estou dizendo! Você não
acredita?
- Acredito sim, acredito, acredito,
não quero lhe ofender.
Em pequena ela vira uma casa pintada
de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom
olhar para dentro. Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço
só para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
- Você sabe se a gente pode comprar
um buraco?
- Olhe, você não reparou até agora,
não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?
Ela ficou de cabeça inclinada para o
ombro assimcomo uma pomba fica triste. Quando ele falava em ficar rico, uma vez
ela lhe disse:
- Não será somente visão?
- Vá para o inferno, você só sabe
desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque você é moça-donzela.
- Cuidado com suas preocupações,
dizem que dá ferida no estômago.
- Preocupações coisa nenhuma, pois
eu sei no certo que vou vencer. Bem, e você tem preocupações?
- Não, não tenho nenhuma. Acho que
nâo preciso vencer na vida. Foi a única vez em que falou
de si própria para Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de si
mesma. Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.
- Você sabia que na Rádio Relógio
disseram que um homem escreveu um livro chamado "Alice no País das
Maravilhas" e que era também um matemático? Falaram também em
"álgebra". O que é que quer dizer "álgebra"?
- Saber disso é coisa de fresco, de
homem que vira mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é
palavrão para moça direita.
- Nessa rádio eles dizem essa coisa
de "cultura" e palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer
"eletrônico"?
Silêncio.
- Eu sei mas não quero dizer.
- Eu gosto tanto de ouvir os pingos
de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz que dá a
hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
- Cultura é cultura - continuou ele
emburrado. -- Você também vive me encostando na parede.
- é que muita coisa eu não entendo
bem. O que quer dizer "renda per capita"?
- Ora, é fácil, é coisa de médico.
- O que dizer rua Conde de Bonfim? O
que é que conde? É príncipe?
- Não contou que o roubara no
mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos.
Ninguém soube, ele era um verdadeiro
técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.
- Sabe o que mais eu aprendi? Eles
disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma
música linda, eu até chorei.
- Era samba?
- Acho que era. E cantada por um
homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía
ouvir. A música chamava-se "Una Furtiva Lacrima". Não sei por que
eles não disseram lágrima. "Una Furtiva Lacrima" fora a única coisa
belíssima na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que
ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando
ouviu começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha
tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava.
Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros
modos de viver, aceitara que com ela era "assim". Mas também creio
que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos
de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma.
Muitas coisas sabia que não sabia entender. "Aristocracia"
significaria por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que
assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se
entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de repente corajosa
e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:
- Eu acho que até sei cantar essa
música. Lá-lá-lálá- lá.
- Você até parece uma muda cantando.
Voz de cana rachada.
- Deve ser porque é a primeira vez
que canto na vida.
Ela achava que "lacrima"
em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência
de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos
cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da
música era a sua única vibração. E o namoro continuava ralo. Ele:
- Depois que minha santa mãe morreu,
nada mais me prendia na Paraíba.
- De que é que ela morreu?
- De nada. Acabou-se a saúde dela.
Ele falava coisas grandes, mas ela
prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria.
Como não tinha lenço para limpar a
lama e o sangue, enxugou o rosto com a saia, dizendo:
- Você não olhe enquanto eu estiver
me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia. Mas ele emburrara de
vez e não disse mais nenhuma palavra. Passou vários dias sem procurá-la: seu
brio fora atingido. Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos diferentes
entraram num açougue. Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a
levitava toda como ,se tivesse comido. Quanto a ele, o que queria ver era o
açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do açougueiro e também queria ser.
Meter a faca na carne o excitava. Ambos saíram do açougue satisfeitos. Embora
ela se perguntasse: que gosto terá esta carne? E ele se perguntava: como é que
uma pessoa consegue ser açougueiro? Qual era o segredo? (O pai de Glória
trabalhava num açougue belíssimo.) Ela disse: - Eu vou ter tanta saudade de mim
quando morrer.
- Besteira, morre-se e morre-se de
uma vez.
- Não foi o que minha tia me
ensinou.
- Que tua tia se dane.
- Sabe o que eu mais queria na vida?
Pois era ser artista de cinema. Só vou ao cinema no dia em que o chefe me paga.
Eu escolho cinema poeira, sai mais barato. Adoro as artistas. Sabe que Marylin
era toda cor-de-rosa?
- E você tem cor de suja. Nem tem
rosto nem corpo para ser artista de cinema.
- Você acha mesmo?
- Tá na cara.
- Não gosto de ver sangue no cinema.
Olhe, sangue eu não posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar.
- Vomitar ou chorar?
- Até hoje com a graça de Deus nunca
vomitei.
- É, dessa vaca não sai leite.
Pensar era tão difícil, ela não
sabia de que jeito se pensava. Mas Olímpico não só pensava como usava
palavreado fino. Nunca esqueceria que no primeiro encontro ele a chamara de
"senhorinha", ele fizera dela um alguém. Como era um alguém, comprou
um batom cor-de-rosa. O seu diálogo era sempre oco. Dava-se conta
longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E "amor"
ela não chamava de amor, chamava
de não-sei-o-quê.
- Olhe, Macabéa...
- Olhe o quê?
- Não, meu Deus, não é "olhe'
de ver, é "olhe" como quando se quer que uma pessoa escute! Está me
escutando?
- Tudinho, tudinho!
- Tudinho o quê, meu Deus, pois se
eu ainda não falei! Pois olhe vou lhe pagar um cafezinho no botequim. Quer?
- Pode ser pingado com leite?
- Pode, é o mesmo preço, se for
mais, o resto você paga.
Macabéa não dava nenhuma despesa a
Olímpico. Só dessa vez quando lhe pagou um cafezinho pingado que ela encheu de
açúcar quase a ponto de vomitar mas controlou-se para não fazer vergonha. O
açúcar ela botou muito para aproveitar. E uma vez os dois foram ao Jardim
Zoológico, ela pagando a própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos.
Tinha medo e não os entendia: por que viviam? Mas quando viu a massa compacta,
grossa, preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta, teve tanto
medo que se mijou toda. O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, que me
perdoe, por favor, sim? Mas não pensara em Deus nenhum, era apenas um modo de.
Com a graça de alguma divindade
Olímpico nada percebeu e ela disse a
ele:
- Estou molhada porque me sentei no
banco molhado. E ele nada percebeu. Ela rezou automaticamente em agradecimento. Não
era agradecimento a Deus, só estava repetindo o que aprendera na infância.
- A girafa é tão elegante, não é?
- Besteira, bicho não é elegante.
Ela teve inveja da girafa que
pairava tão longe no ar. Tendo visto que seus comentários sobre bichos não
agradavam Olímpico, procurou outro assunto:
- Na Rádio Relógio disseram uma
palavra que achei meio esquisita: mimetismo.
Olímpico olhou-a desconfiado:
- Isso é lá coisa para moça virgem
falar? E para que serve saber demais? O Mangue está cheio de raparigas que
fizeram perguntas demais.
- Mangue é um bairro?
- É lugar ruim, só pra homem ir.
Você não vai entender mas eu vou lhe dizer uma coisa: ainda se encontra mulher
barata. Você me custou pouco, um cafezinho. Não vou gastar mais nada com você,
está bem?
Ela pensou: eu não mereço que ele me
pague nada porque me mijei. Depois da chuva do Jardim Zoológico, Olímpico não
foi mais o mesmo: desembestara. E sem notar que ele próprio era de poucas
palavras como convém a um homem sério, disse-lhe:
- Mas puxa vida! Você não abre o
bico e nem tem assunto!
Então aflita ela lhe disse:
- Olhe, o Imperador Carlos Magno era
chamado na terra dele de Carolus! E você sabia que a mosca voa tão depressa que
se voasse em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias?
- Isso é mentira!
- Não é não, juro pela minha alma
pura que aprendi isso na Rádio Relógio!
- Pois não acredito.
- Quero cair morta neste instante se
estou mentindo. Quero que meu pai e minha mãe fiquem no inferno, se estou lhe
enganando.
- Vai ver que cai mesmo morta.
Escuta aqui: você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?
- Não sei bem o que sou, me acho um
pouco... de quê? . . . Quer dizer não sei bem quem eu sou.
- Mas você sabe que se chama
Macabéa, pelo menos isso?
- É verdade. Mas não sei o que está
dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante...
- Pois fique sabendo que meu nome
ainda será escrito nos jornais e sabido por todo o mundo.
Ela disse para Olímpico:
- Sabe que na minha rua tem um galo
que canta?
- Por que é que você mente tanto?
-- Página 74
- Juro, quero ver minha mãe cair
morta se não é verdade!
- Mas sua mãe já não morreu?
- Ah, é mesmo ... que coisa ... (Mas
e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a
ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. Será que o meu
ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se
sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma
nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro.
Quanto ao paraibano, na certa devo
ter-lhe fotografado mentalmente a cara - e quando se presta atenção espontânea
e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo.) E
agora apago-me de novo e volto para essas duas pessoas que por força das
circunstancias eram seres ; meio abstratos. Mas ainda não expliquei bem
Olímpico. Vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da
paixão por sua terra braba e rachada pela seca. Trouxera consigo, comprada no
mercado da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua e
exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo. Não desconfiava que as
cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa. Nascera crestado e duro que
nem galho seco de árvore ou pedra ao sol. Era mais passível de salvação que
Macabéa pois não fora à toa que matara um homem, desafeto seu, nos cafundós do
sertão, o canivete comprido entrando mole-mole no fígado macio do sertanejo.
Guardava disso segredo absoluto, o que lhe dava a força que um segredo dá.
Olímpico era macho de briga. Mas fraquejava em relação a enterros: às vezes ia,
três vezes por semana a enterro de desconhecidos, cujos anúncios saíam nos
jornais e sobretudo no "O dia": e seus olhos ficavam cheios de
lágrimas. Era uma fraqueza, mas quem não tem a sua.
Semana em que não havia enterro, era
semana vazia desse homem que, se era doido, sabia muito bem o que queria. De
modo que não era doido coisa alguma. Macabéa, ao contrário olímpico, era fruto
do cruzamento "o quê" com "o quê". Na verdade ela parecia ter
nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais famintos. Olímpico pelo menos
roubava sempre que podia e ate do vigia de obras onde era sua dormida. Ter
matado e roubar faziam com que ele não fosse um simples acontecido qualquer,
davam-lhe uma categoria, faziam dele um homem com honra até lavada. Ele também
se salvava mais do que Macabéa o que tinha grande talento para desenhar
rapidamente perfeitas caricaturas ridículas dos retratos de poderosos nos
jornais. Era a sua vingança. Sua única bondade com Macabéa foi dizer-lhe que
arranjaria para ela emprego na metalúrgica quando fosse despedida. Para ela a promessa
fora um escândalo de alegria (explosão) porque na metalúrgica encontraria a sua
única conexão atual com o mundo: o próprio Olímpico. Mas Macabéa de um modo
geral não se preocupava com o próprio futuro: ter futuro era luxo: Ouvira Rádio
Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se sentia perdida. Mas
com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou: havia sete bilhões
de pessoas para ajudá-la. Macabéa gosta de filme de terror ou de musicais,
Tinha predileção por mulher enforcada ou que levava um tiro no coração. Não
sabia que ela própria era uma suicida embora nunca lhe tivesse ocorrido se
matar. É que a vida lhe era tão insossa que nem pão velho sem manteiga.
Enquanto Olímpico era um diabo premiado e vital e dele nasceriam filhos, ele
tinha o precioso sêmen. E como já foi dito ou não foi dito
Macabéa tinha ovários murchos como
um cogumelo cozido. Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato
de sopa um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor. E fazer que quando
ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de viver.
Olímpico na verdade não mostrava
satisfação nenhuma em
namorar Macabéa - é o que eu descubro agora. Olímpico talvez
visse que Macabéa não tinha força de raça, era subproduto. Mas quando ele viu a
colega da Macabéa, sentiu logo que ela tinha classe.
Glória possuía no sangue um bom
vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por. causa do
sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice.
Oxigenava em amarelo ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas.
Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para
Olímpico. Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar. É
que Glória lhe dissera, quando lhe fora apresentada por Macabéa: "sou
carioca da gema!" Olímpico não entendeu o que significava "da
gema" pois esta era uma gíria ainda do tempo de juventude do pai de
Glória. O fato de ser carioca tornava-a pertencente ao ambicionado clã do sul
do país. Vendo-a, ele logo adivinhou que, apesar de feia, Glória era bem
alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade.
Enquanto isso o namoro com Macabéa
entrara em rotina morna, se é que alguma vez haviam experimentado o quente.
Muitas vezes ele não aparecia no ponto do ônibus. Mas pelo menos era um
namorado. E Macabéa só pensava no dia em que ele quisesse ficar noivo. E casar.
Posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube, que Glória tinha mãe, pai é
comida quente em hora certa. Isso tornava-a de primeira qualidade Olímpico caiu
em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue.
Pelos quadris adivinhava-se que
seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio
fim. Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para corpo quase
murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão
rico como o de uma donzela grávida, engravidada por si mesma, por
partenogênese; tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais
antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra
sangrenta. Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro entre
Olímpico e Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum
amor pálido. Ele avisou-lhe que encontrara outra moça é que esta era Glória.
(Explosão) Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória: os olhos de
ambos se haviam beijado. Diante da cara um pouco inexpressiva demais de
Macabéa, ele até que quis lhe dizer
alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre. E ao se despedir lhe
disse:
- Você, Macabéa, é um cabelo na sopa
dá vontade de comer. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas
sou sincero. Você está ofendida?
- Não, não, não! Ah por favor, quero
ir embora! Por favor me diga logo adeus!
É melhor eu não falar em felicidade
ou infelicidade - provoca aquela saudade desmaiada e lilás, aquele perfume de
violeta, as águas geladas da maré mansa em espumas pela areia. Eu não quero
provocar porque dói. Macabéa esqueci de dizer tinha uma infelicidade era
sensual. Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia, sem que
ela soubesse que tinha? Mistério. Havia, no começo do namoro, pedido a Olímpico
um retratinho tamanho 3x4 onde ele saiu rindo para mostrar o canino de ouro e
ela ficava tão excitada que rezava três pai-nossos e duas ave-marias para se
acalmar.
Na hora em que Olímpico lhe dera
o fora, a reação dela (explosão) veio de repente inesperada: pôs-se sem mais
nem menos a rir. Ria por não ter se lembrado de chorar. Surpreendido. Olímpico,
sem entender, deu gargalhadas. Ficaram rindo os dois. Aí ele teve uma intuição
que finalmente era uma delicadeza: perguntou-lhe se ela
estava rindo de nervoso. Ela parou
de rir e disse muito, muito cansada:
- Não sei não . . .
Macabéa entendeu uma coisa: Glória
era um estardalhaço de existir. E tudo devia ser porque Glória era gorda. A
gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz
dizer para uma gorda que passava na rua: "a tua gordura é formosura!"
A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua
vida. Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau. (Já então tinha
tendência para anúncios.) A tia perguntara-lhe: você pensa lá que é filha de
família querendo luxo? Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era uma
pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não sentiu
desespero, etc. etc.).
Também que é que ela podia fazer?
Pois ela era crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem
podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.
Esqueci de dizer que no dia seguinte
ao que ele lhe dera o fora ela teve uma idéia. Já que ninguém lhe dava festa,
muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em
comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas
vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos
contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios
de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por
sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe
tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e
rasga-carne (pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória
riu-se dela:
- Você endoidou, criatura? Pintar-se
como uma endemoniada? Você até parece mulher de soldado.
- Sou moça virgem! Não sou mulher de
soldado e marinheiro.
- Me desculpe eu perguntar: ser feia
dói?
- Nunca pensei nisso, acho que dói
um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
- Eu não sou feia!!! - gritou
Glória.
Depois tudo passou e Macabéa
continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha
anjo da guarda. Mas se arranjava como podia.
Quanto ao mais, ela era quase
impessoal. Glória perguntou-lhe:
- Por que é 'que você me pede tanta
aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar. Aliás
cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em simplicidade
orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de
um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por
isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia
que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas
outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir
pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a
muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória
advertiu-a:
- Um dia a pílula te cola na parede
da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí.
Um dia teve um êxtase. Foi diante de
uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraçá-la. Mas apesar do
êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso
Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela
de:.alma quase. voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória
mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Náo se conta
tudo porque o tudo é um oco nada. As vezes a graça a pegava em pleno
escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até
passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o
que lhe tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles. Nem Glória era uma
amiga: só colega. Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito.
Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas
cabeludas e das axilas que ela não raspava:
Olímpico: será que ela é loura
embaixo também?
Em relação a Macabéa, Glória tinha
um vago senso de maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:
- E esse ar é por causa de?
Macabéa, que nunca se irritava com
ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase
inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que
tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque
Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia,
Glória, o Seu Raimundo e Olímpico - e de. muito longe as moças com as quais
repartia o quarto. Em compensação se conectava com o retrato .de Greta Garbo
quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir
o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa
mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo
ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade esta e em pedestal
solitário. O que ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia,
em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser. E Glória
caiu na gargalhada:
- Logo ela, Maca? Vê se te manca!
Glória era toda contente consigo
mesma: dava-se grande valor. Sabia que o sestro molengole de mulata, uma
pintinha marcada junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que
ela oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha
esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa .mas ela que se
arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com
ela.
Ninguém pode entrar no coração de
ninguém. Macabéa até que falava com Glória - mas nunca de peito aberto.
Glória tinha um traseiro alegre e
fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internáveis
com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe
dava. E havia nela um desafio que se resumia em "ninguém manda em
mim". Mas lá um dia pôs-se a olhar e a olhar e a olhar
Macabéa. De repente não agüentou e
com um sotaque levemente português disse:
- Oh mulher, não tens cara?
Comia-se muito.. Glória morava na
rua General não sei- o quê, muito contente de morar em rua de militar,
sentia-se mais garantida. Em sua casa até telefone tinha. Foi talvez essa uma
das poucas vezes em que Macabéa
viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava.
Isto é, um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e
muitas espécies de roscas açucaradas, sem falar num pequeno bolo. Macabéa,
enquanto Glória saía da sala - roubou escondido um biscoito. Depois pediu
perdão ao Ser abstrato que dava e tirava. Sentiu-se ,perdoada. O Ser a perdoava
de tudo.
No dia seguinte, segunda-feira, não
sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo
de beber coisa de rico, passou mal. Mas teimosa não vomitou para não
desperdiçar o luxo do chocolate. Dias depois, recebendo o salário, teve a
audácia de pela primeira vez na vida (explosão) procurar o médico barato
indicado por Glória: Ele a examinou, a examinou e de novo a examinou.
- Você faz regime para emagrecer,
menina? Macabéa não soube o que responder.
- O que é que você come?
-
Çachorro-quente.
- Só?
- As vezes como sanduíche de
mortadela.
- Que é que você bebe? Leite?
- Só café e refrigerante.
- Que refrigerante? - perguntou ele
sem saber o que falar. A toa indagou:
- Você às vezes tem crise de vômito?
- Ah, nunca! -exclamou muito
espantada, pois não era oída de desperdiçar comida, como eu disse. médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia regime
para emagrecer. Mas era-lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta
de emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que era médico de pobres. Foi o
que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou, achava que
ir ao médico por si só já curava. Ele acrescentou irritado sem atinar com o
porquê de sua súbita irritação e revolta:
- Essa história de regime de
cachorro-quente é pura neurose e o que está precisando é procurar um
psicanalista!
Ela nada entendeu, mas pensou que o
médico esperava que ela sorrisse. Então sorriu. O médico muito gordo e suado
tinha tique nervoso que fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios.
O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes
a chorar. se médico não tinha objetivo nenhum. A medida era penas para ganhar
dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes. Era desatento e achava a nobreza
uma coisa feia. Trabalhava para os pobres e testando lidar com eles. Eles eram
para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também lhe não
pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas
mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que
queria: nada.
- Ouvi dizer que no médico se tira a
roupa, mas eu não tiro coisa nenhuma. assara-a pelo raio X e dissera:
- Você está com começo de
tuberculose pulmonar.
Ela não sabia se isso era coisa boa
ou coisa ruim. em, como era uma pessoa muito educada, disse:
- Muito obrigada, sim?
O médico simplesmente se negou a ter
piedade. E acrescentou: quando você não souber o que comer faça m espaguete bem
italiano.
E acrescentou com um mínimo de
bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela
sorte!
- Não é tão caro assim ...
- Esse nome de comida que o senhor
falou eu nunca comi na vida. É bom?
- Claro que é! Olhe só a minha
barriga! Isso é resultado de boas macarronadas e muita cerveja.
Dispense a cerveja, é melhor não
beber álcool. Ela repetiu cansada:
- Álcool?
- Sabe de uma coisa? Vá para os
raios que te partam!Sim estou apaixonado por Mácabéa a minha querida Maca
apaixonado pela sua feiúra e anonimato total, pois ela não é para ninguém.
Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto tanto que
ela abrisse a boca e dissesse:
- Eu sou sozinha no mundo e não
acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho
que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.
Maca, porém, jamais disse frases; em
primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência
de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma
idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção
em si mesma: ela não sabia. (Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha: eu
preciso de algumas horas de solidão por dia senão "me muero".)
Quanto a mim, só sou verdadeiro
quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para
outro eu cairia para fora do mundo. Porque as nuvens não caem, já que tudo cai?
É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta.
Inteligente, não é? Sim, mas caem um
dia em chuva. Aminha
vingança.
Nada contou a Glória porque de um
modo geral mentia:tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais decente. Achava
que boa educação é saber mentir.
Mentia também para si mesma em
devaneio volátil na sua inveja da colega. Glória, por exemplo, era inventiva:
Macabéa viu-a se despedir de
Olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se
solta passarinho, o que Macabéa nunca pensaria em fazer. (Esta história são
apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem direto antes de
eu pensar. Sei muita coisa que não posso dizer. Aliás pensar o quê?) Glória,
talvez por remorso, disse-lhe:
- Olímpico é meu, mas na certa você
arranja outro namorado: Eu digo que ele é meu porque foi o que aminha
cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca
erra. Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?
- É muito caro? Estou absolutamente
cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque
nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra
no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria
chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade
da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me
fascina. Quero ser porco é galinha matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no
sexo de Macabéa, miúdo, mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes
pêlos negros - seu sexo era a única marca veemente de sua existência.
Ela nada pedia, mas seu sexo exigia,
como um nascido girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado.Talvez da
companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja.
Tenho que interromper esta história por uns três dias.Nestes últimos três dias,
sozinho, sem personagens,despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma
roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer. E agora emerjo e sinto falta de
Macabéa. Continuemos:
- É muito caro?
- Eu lhe empresto. Inclusive madama
Carlota também quebra feitiço que tenham feito contra a gente. Ela quebrou o
meu à meia-noite em ponto de uma sexta-feira treze de agosto, lá para lá de S.
Miguel, num terreiro de macumba. Sangraram em cima de mim um porco preto, sete
galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já estava toda ensangüentada. Você
tem coragem?
- Não sei se posso ver sangue.Talvez
porque sangue é a coisa secreta de cada um, a tragédia vivificante. Mas Macabéa
só sabia que nãopodia ver sangue, o resto fui eu que pensei. Estou me
interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras duras. Não há como
fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo. Bem. Diante da súbita ajuda,
Macabéa, que nunca se lembrava de pedir, pediu licença ao chefe inventando dor
de dente e aceitou o dinheiro emprestado que nem sabia quando ia devolver. Essa
audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior (explosão): como o dinheiro
era emprestado, ela raciocinou tortamente que não era dela e então podia
gastá-lo. Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria.
Desconfio que ousou tanto por
desespero, embora não soubesse que estava desesperada, é que estava gasta até a
última lona, a boca a se colar no chão.
Não foi difícil achar o endereço da
madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal. O apartamento térreo
ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim - ela o
notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante. Pensou vagamente
enquanto tocava a campainha da porta: capim é tão fácil e simples. Tinha
pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior.A
própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com naturalidade e disse:
- O meu guia já tinha me avisado que
você vinha me ver, minha queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é?É muito
lindo. Entre, meu benzinho.
Tenho uma cliente na salinha dos
fundos, você espera aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?Macabéa
sentou-se um pouco assustada porque faltavam-lhe antecedentes de tanto carinho.
E bebeu com cuidado pela própria frágil vida, o café fria e quase sem açúcar.
Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era
de luxo.Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de
plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta.
Afinal saiu dos fundos da casa uma
moça com olhos muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar. (Como é
chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever
esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim.
Não me responsabilizo pelo que agora escrevo).
Continuemos, pois, embora com
esforço: madama Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com
vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia
um bonecão de louça meio quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar esta
história. Descrever me cansa.)
- Não tenha medo de mim, sua
coisinha engraçadinha.Porque quem está ao meu lado, está no mesmo instante ao
lado de Jesus.
E apontou o quadro colorido onde
havia exposto em vermelho e dourado o coração de Cristo.
- Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha
por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha bastante
categoria para levar vida fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus.
Depois, quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos
arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa
de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo.
Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que
só faziam era querer me roubar. Você está interessada no que eu digo?
- Muito.
- Pois faz bem porque eu não minto.
Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não
deixa pôr cartas, acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse,
nem a polícia consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele até me conseguiu
dinheiro para ter mobília de grãfino?
- Sim senhora.
-- Página 92
- Ah, então você também acha, não é?
Pelo que vejo você: é inteligente, ainda bem, porque a inteligência me salvou.
Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do
outro e ia enchendo a boca pequena. Não ofereceu nenhum a Macabéa. Esta,
que,como eu disse, tinha tendência a notar coisas pequenas, percebeu que dentro
de cada bombom mordido havia um líquido grosso. Não cobiçou o bombom pois
aprendera que as coisas são dos outros.
- Eu era pobre, comia mal, não tinha
roupas boas.Então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa,
tinha carinho por todos os homens.
Além do mais, na zona era divertido
porque havia muita conversa entre as coleguinhas. Nós éramos muito unida se só
de vez em quando eu me atracava com uma. Mas isso também era bom, porque eu era
muito forte e gostava debater, de puxar cabelos e morder. Por falar em morder, você
não pode imaginar que dentes lindos eu tinha;todos branquinhos e brilhantes.
Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça. Você acha que se nota
que são postiços?
- Não senhora.
- Olhe, eu era muito asseada e não
pegava doença ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou.
Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando
o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu
sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele
era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que
ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros seu
trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando
mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você
é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir
uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais
fino.Você tem chance de ter uma mulher?
- Não senhora.
- É que também você nem se enfeita.
Quem não se enfeita, por si mesma se enjeita. Ai que saudades da zona! Eu
peguei o melhor tempo do Mangue que era freqüentado por verdadeiros
cavalheiros. Além do preço fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer
que o Mangue está acabando, que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas. Em
meu tempo havia umas duzentas.
Eu ficava em pé encostada na porta
vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente. Depois, quando eu já estava
ficando muito gorda e perdendo os dentes,é que me tornei caftina.Você sabe o
que quer dizer caftina? Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras.
Tem gente que se assusta com o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras,
benzinho?- Tenho, sim senhora.
- Então vou me cuidar para não
escapulir nenhum palavrão, fique sossegada. Ouvi dizer que o Mangue tem um
cheiro insuportável. No meu tempo a gente punha incenso queimando para dar um
ar limpo na casa. Até tinha cheiro de igreja. E tudo era muito respeitoso ecom
muita religião. Quando eu era mulher-dama já ia juntando meu dinheirinho, dando
porcentagem à chefa, é claro. De vez em quando havia tiros, mas nada comigo.
Minha florzinha, estou te aborrecendo com minha história? Ah, não Você tem
paciência de esperar pelas cartas?
- Tenho, sim senhor.
Então madama Carlota contou-lhe que
lá no Mangue, no seu cubículo, havia enfeitos lindos nas paredes.
- Você sabe, meu amor, que cheiro de
homem é bom?Faz bem à saúde. Você já sentiu cheiro de homem?Macabéa separou um
monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino. Madana Carlota (explosão)
era um ponto alto na sua existência. Era o vórtice de sua vida e esta se
afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à
pele arregalou os olhos.
- Mas, Macabeazinha, que vida
horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!
Macabéa empalideceu: nunca lhe
ocorrera que sua vida fora tão ruim.Madana acertou tudo sobre o seu passado,
até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente
muito madrasta má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre
julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se tornasse uma
moça mais fina. Madama acrescentou
- Quando ao presente, queridinha,
está horrível também. Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado, coitada
de vocezinha. Se não puder, não me pague a consulta, sou madana de recursos.
Macabéa, pouco habituada a receber
de graça, recusou a dádiva, mas com o coração todo grato.
- E eis que (explosão) de repente
aconteceu: o rosto da madana se acendeu todo iluminado:
- Macabéa! Tenho grandes notícias
para lhe dar!Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que
vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar
completamente! E digo mais a partir do momento em que você vai voltar e propor
casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e
não vai mais lhe despedir.
Macabéa nunca tinha tido coragem de
ter esperança.Mas agora ouvia a madana como se ouvisse uma trombeta vinda dos
céus - enquanto suportava uma trombeta vinda do céus - Enquanto suportava uma
forte taquicardia. Madana tinha razão: Jesus enfim prestava atenção nela. Seus
olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro (explosão). E
eu também estou com esperança enfim.
- E tem mais! Um dinheiro grande vai
lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem
estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro?
- Não senhora - disse Macabéa já
desanimando.
- Pois vai conhecer. Ele é alourado
e tem olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você
gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora
estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também
ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem
vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se
não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha
enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!
Macabéa começou (explosão) a
tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade. Só lhe
ocorreu dizer:
- Mas casaco de pele não precisa no
calor do Rio...
- Pois vai ter só para se enfeitar.
Faz tempo não boto cartas tão boas. E sou sempre sincera: por exemplo, acabei
de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser
atropelada, ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?
E agora vou lhe dar um feitiço que
você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio, coitada, bem em
contacto com a pele. Você não tem busto, mas vai engordar e vai ganhar corpo.
Enquanto você não engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para
fingir que tem. Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por
Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para
um asilo de crianças, Mas se não puder, não pague, só venha e pagar quando tudo
acontecer.
- Não, eu lhe pago, a senhora
acertou tudo, a senhora é...
Estava meio bêbada, não sabia o que
pensava, parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos
cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma
infidelidade.Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros
chamavam de paixão: estava apaixonada por
Hans.
- E que é que eu faço para ter mais
cabelo? - ousou perguntar porque já se sentia outra.
- Você está querendo demais. Mas
está bem: lave a cabeça com sabão Aristolino, não use sabão amarelo empedra.
Esse conselho eu não cobro.
Até isso? (explosão) bateu-lhe o
coração, até mais cabelo? Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte
demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia
como errar, era vasto o campo das possibilidades.
- E agora - disse a madama - você vá
embora para encontrar seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra
freguesa esperando, demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a pena!Num
súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso
Macabéa, entre feroz e desajeitada,
deu um estalado beijo no rosto da madama. E sentiu de novo que sua vida já
estava melhorando ali mesmo: pois era bom beijar. Quando ela era pequena, como
não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si
própria.
Madama Carlota havia acertado tudo.
Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria.Teve
vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como disse, até então se
julgava feliz.Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no
beco escurecido pelo crepúsculo -
crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último
final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de
atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa.
Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua, pois sua vida
já estava mudada. E mudada por palavras - desde Moisés se sabe que apalavra é
divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida
de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho
desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia
por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara
sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu
vontade de chorar.
Mas não chorou: seus olhos faiscavam
como o sol que morria.
Então ao dar o passo de descida da
calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é
agora é - já, chegou a minha vez!
E enorme como um transatlântico o
Mercedes amarelo pegou-a - e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo
um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.
Macabéa ao cair ainda teve tempo de
ver antes que o carro fugisse que já começavam a ser cumpridas as predições de
madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou
ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara
caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue
inesperadamente vermelhos e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela
pertencia a uma resistente raça não teimosa que um dia vai talvez reivindicar o
direito ao grito.(Eu ainda poderia voltar atrás .em retorno aos minutos
passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de
pé na calçada - mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro
a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. Ainda bem que
pelo menos não falei e nem falarei em morte e sim apenas, um atropelamento.)
Ficou inerme no canto da rua, talvez
descansando das emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um
verde da mais tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia
de minha vida:nasci.(A verdade é sempre um contacto interior inexplicável. A
verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.)
Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza
se dava apenas em forma de capim de sarjeta - se lhe fosse dado o mar grosso ou
picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem que o corpo, se
alucinaria e explodir-sé-lhe-ia o organismo, braços pra cá, intestino para lá,
cabeça rolando redonda e oca a seus pés - como se desmonta um manequim de cera.
Prestou de repente um pouco de
atenção para si mesma. O que estava acontecendo era um surdo terremoto?
Tinha-se aberto em fendas a terra de alagoas. Fixava, só por fixar, o capim.
Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro. A toa. Quem sabe se Macabéa já teria
alguma vez sentido que também ela já era à-toa na cidade inconquistável. O
Destino havia escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta.Ela sofria?
Acho que sim. Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida
pingando sangue.Só que a galinha foge - como se foge da dor - em cacarejos
apavorados. E Macabéa lutava muda.Vou fazer o possível para que ela não morra.
Mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir. Então
começou levemente a garoar. Olímpico tinha razão: ela só sabia mesmo era
chover. Os finos fios de água gelada aos poucos empapavam-lhe a roupa e isso
não era confortável.Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é
história de aflições? Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde haviam
se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada
haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma
existência. (Mas quem sou eu para censurar os culpados.? O pior é que preciso
perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não
se ame o criminoso que nos mata. Mas não estou seguro de mim mesmo: preciso
perguntar, embora não saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e
perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu,responde
que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga,
mesmo que eu morra depois. Se assim é; que assim seja.)Macabéa por acaso vai
morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via
das dúvidas. algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa. O
luxo da rica flama parecia cantar glória.(Escrevo sobre o mínimo parco
enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor.É assim que se escreve?Não; não é
acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra
final.)Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma
Macabéa, como se chegasse a si mesma.
Este é um melodrama? O que sei é que
melodrama era o ápice de sua vida, todas as vidas são uma arte e a dela tendia
para o grande choro insopitável como chuva e raios.Apareceu portanto um homem
magro de paletó puído tocando violino na esquina.Devo explicar que este homem
eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e
agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura. Junto do homem
esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o
ouviam com gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo e só agora
brotou-se-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eu morrer
vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música.Macabéa, Ave
Maria" cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que
chegar o tempo,ora pro nóbis, e eu me uso como forma de conhecimento.Eu te
conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti.
Espraiar-se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma geometria
inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração de
.sua vida.
Macabéa pedir perdão? Porque sempre
se pede Por quê?Resposta: é assim porque assim é. Sempre foi? Sempre será. E se
não foi? Mas eu estou dizendo que é. Pois.Via-se perfeitamente que estava viva
pelo piscar constante dos olhos grandes, pelo peito magro que se levantava e
abaixava em respiração talvez difícil. Masquem sabe se ela não estaria
precisando de morrer?Pois há momentos em que a pessoa está precisando de uma
pequena mortezinha e sem nem ao menos saber. Quanto a mim, substituo o ato da
morte por um seu símbolo. Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo
mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na agonia do prazer que é morte. Eu,
que simbolicamente morro várias vezes só para experimentara ressurreição. Acho
com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer.
Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro
estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para
soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta
balançando ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil,
matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem
um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago .Por
enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos.
Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história.Mas não: irei
até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei
até onde o vácuo faz uma curva, irei aonde meu fôlego me levar.Meu fôlego me
leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei: não preciso ter
piedade de Deus. Ou preciso?Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o
corpo em posição fetal. Grotesca como sempre fora.
Aquela relutância em ceder, mas
aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do
grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada. Era uma
maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia
mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia. Fora
buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus
nos dá. Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela
nascera para o abraço da morte. A morte que é nesta história o meu personagem
predileto.Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que ela não vai morrer porque tem
tanta vontade de viver. E havia certa sensualidade no modo como se encolhera.
Ou é porque a pré-morte se parece com a intensa ânsia sensual? É que o rosto
dela lembrava um esgar de desejo. As coisas são sempre vésperas de morrer, perdoai-me
lembrar-vos porque quanto a mim não me perdôo a clarividência. Um gosto suave,
arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a graça que vós chamais de
Deus? Sim ? Se iria morrer, na morte passava de virgem mulher. Não, era morte,
pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer
desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara,
virgem que não era, ao mesmo intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce
mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é se rmulher. Intuíra o
instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim,doloroso
reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que
vós chamais de alma e que eu chamo - o quê? Aí Macabéa disse uma frase que nenhum
dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro:
- Quanto ao futuro.Terá tido ela
saudade do futuro? Ouço a música antiga de palavras e palavras, sim, é assim.
Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou,
queria vomitar o que não é corpo,vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. O
que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou. um pouco de
sangue, vasto espasmo,enfim o âmago tocando no âmago: vitória!
E então - então o súbito grito
estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos
ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida
come a vida. Até tu, Brutus?!Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que –
que Macabéa morreu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação. Qual foi a
verdade de minha Maca? Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais:
passou o momento.
Pergunto: o que é? Resposta: não é. Mas
que não se lamentem os mortos: eles .sabem o que fazem. Eu estive na terra dos
mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente!
Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdição e é como se a
grande culpa fosse minha. Quero que me lavem ,as mãos e os pés e depois -
depois que os untem com óleos santos de tanto perfume. Ah que vontade de
alegria. Estou agora me esforçando para rir em grande gargalhada. Mas não sei
por que não rio. A morte é um encontro consigo.
Deitada, morta, era tão grande como
um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é
insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso. Macabéa me matou. Ela
estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante,
passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte.
É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a parede. Mas eis
que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo: o morticínio dos
pombos!!! Viver é luxo. Pronto, passou.Morta, os sinos badalavam mas sem que
seus bronzes Ihes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência
que há nos sinos que quase-quase badalam.A grandeza de cada um.Silêncio.Se um
dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.O silêncio é tal que nem o
pensamento pensa.O final foi bastante grandiloquente para a vossa necessidade?
Morrendo ela virou ar: Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é
aquele átimo de tempo em que o. pneu do carro correndo em alta velocidade toca
no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc. No fundo
ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada. Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da luz?
E agora - agora só me resta acender
um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas
- mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é
tempo de morangos.
Sim.
http://www.4shared.com/get/29228288/b17dcc0b/A_HORA_DA_ESTRELA_-_Clarice_Lispector.html;jsessionid=06CFF0634D14E88DF0BD9A2D9F8AB04C.dc90
Acessado em 20/08/2009.
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